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Jornal DIÁRIO DO NORDESTE
Quinta-feira - 12-12-2019
Fortaleza - Ceará - Brasil
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Cheiros, sons e obstáculos desenham rotina de cegos em Fortaleza


Das calçadas esburacadas que desequilibram o corpo ao aroma de pão quente que orienta o caminho, deficientes visuais se apropriam da cidade em busca de afirmação e autonomia; solidariedade do outro e acessibilidade são desafios


Ivanise Sampaio, 69, relata que se localiza por meio dos cheiros da cidade

Os pés de Jhonathan Silva, 6, quase não acompanham a agitação do dono, quando o portão de casa se abre: mergulham, inconsequentes, na lama esverdeada que escorre pela rua sem pavimentação. Os de Priscila Aquino, 29, já sucumbiram a um buraco-armadilha, em uma grande avenida, sendo depois costurados com cinco pontos - e, por isso, mal tocam o solo de Fortaleza. Já os pisantes de Ivanise Sampaio, experientes aos 69, costumavam conhecer cada rua do Centro, "antigamente" - hoje, várias mudaram de sentido, ficou difícil percorrê-las.

Jhonathan perdeu a visão nos primeiros meses de vida, diferentemente de Ivanise, que já nasceu cega. Para Priscila, por outro lado, não ter um dos principais sentidos é realidade há apenas dois meses. As três gerações se encontram aqui, no Dia Nacional do Cego (13 de dezembro), para mostrar as dores e amores que é explorar Fortaleza pelos cheiros, sons, gostos e texturas - vivências de, pelo menos, 242 mil cearenses que têm deficiência visual, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Enxergar os impactos de atitudes e até de mudanças estruturais "simples" da cidade na garantia de autonomia a pessoas cegas não integra a rotina da sociedade nem do Poder Público - mas é basilar, como aponta Ivanise.

"A gente se localiza muito pelo olfato.
Quando tô no Centro, sinto quando passo
em frente a uma loja de cosméticos, uma
farmácia, um restaurante... Hoje tá mais
difícil, as pessoas fecham as portas por
causa do calor, dos assaltos."

E se para muitos a mudança de sentido de uma rua representa um transtorno, para outros é determinante ao direito de ir e vir. "A gente anda contando os quarteirões. Mas agora as ruas estão mudando os sentidos, e isso dificulta. Eu, hoje, fico perdida", lamenta a pedagoga aposentada. Apesar disso, se um lugar é feito também pela sua gente, a aposentada mostra que a cidade pode ser vivenciada assim, por meio das pessoas.

Assim, outros tipos de mudanças simples são também transformadoras. "A gente ainda encontra gente muito humana, mas tem outras? Meu marido também é cego e trabalha na Praia do Futuro. Tem motorista de ônibus que chega na parada e já chama ele, desce com ele pra ajudar a atravessar. Já outros são horríveis, o transporte em geral é muito difícil", relata a canindeense, que aprendeu na Sociedade de Assistência aos Cegos (popular Instituto dos Cegos), na Capital, as estratégias que precisava para se adaptar e explorar a cidade grande.

 Recomeços

Para Priscila, o aprendizado começou há pouco tempo: ingressou recentemente nas aulas de braille do instituto, e tem o último ano da juventude marcado por recomeço. "Comecei a perder a visão aos 15. Primeiro, perdi de um olho, mas a gente nem nota, pra gente é normal. No último tratamento, bateu o medo de ficar cega e fiz cirurgias pra evitar. Mas houve um erro médico e já subi pra UTI sem a visão. Saí do hospital vendo tudo escuro", relata a autônoma, nascida com uma doença prejudicial ao nervo óptico.

Hoje, a enfermidade já não existe mais. A sequela, sim. "Eu enxergo vultos, não consigo identificar o rosto da pessoa, é tudo embaçado", descreve. As renúncias, então, são recentes: o celular que era vício, agora é secundário; a televisão, sem audiodescrição, serve mais para ansiedade do que para entreter, assim como a ida à praia sem poder ver o mar. Por enquanto, pé na areia e cheiro de maresia ainda não são suficientes.

"É uma nova vida. Pretendo estudar no Instituto (dos Cegos), ocupar minha cabeça. Não sou triste, não me sinto tão depressiva, mas a cidade é péssima em termos de estrutura, e a forma como as pessoas tratam deficientes... Não sei descrever. Tenho tanto medo de andar sozinha, que eu não saio mais só. Acho que o medo vai brotar em mim pra sempre", presume Priscila, ainda marcada pela lembrança de quando saiu sozinha e caiu em um buraco na via, saindo de lá com um corte profundo em um dos pés.

Apesar de tudo e de todas as novidades que ainda assustam, a esperança se faz luz ao caminho. "Não sei como a pessoa que já nasceu deficiente se estabiliza nesses cantos... Talvez seja melhor, porque ela já nasceu assim, né? Como assim você estar na praia e não enxergar nada, só vento e barulho? Num restaurante, por exemplo, só ouvir as pessoas conversando e não ver ninguém? Pra mim, que morava só, me tornar dependente foi o fim da vida. É toda uma adaptação, mas tenho certeza de que vou evoluir muito", assegura a jovem.

 Fortalezas

Para quem praticamente "já nasceu assim", como Jhonathan, a pureza é que conduz os passos - mesmo os miúdos. Cego em decorrência do estrabismo, que vitimou também a irmã mais velha, Jhenifer dos Santos, 9, o garoto "gosta de brincar de esconde-esconde, de correr, de pular e de ir no parquinho da escola" e quer explorar e mostrar o mundo aos outros pela voz. "Eu quero ser locutor, igual ao Padre Reginaldo Manzotti", empolga-se, minutos antes de correr à rua montado na bicicleta - "sem rodinhas".

Foto do Jornal Diário do Nordeste
Irmãos Jhenifer, 9, e Jhonathan dos Santos, 6, cegos  por conta
do estrabismo, são estimulados a desenvolver autonomia

 

Já para a irmã, "o negócio é internet" - com a ajuda da prima e melhor amiga, Elisa, 6, os vídeos de desenhos animados e de Youtubers infantis dominam o celular de Jhenifer. Além da audição, é o tato que a apresenta o mundo, desde os 4 anos, quando começou a estudar braille. "O que eu mais gosto de aprender é braille. No começo era difícil, agora é mais fácil", diz a menina que, segundo a mãe, Aline dos Santos, 26, "faz tudo sozinha".

"Ela toma banho, escova os dentes, se veste, se penteia. Lá no Instituto (eles) ensinam ela a ser assim, independente, e me ensinam também a deixar eles serem livres. Não posso dar tudo na mão deles: eles têm que ir e fazer. De vez em quando, eles saem, se batem no carro dos vizinhos, tropeçam num batente? Mas não deixam de viver as coisas nem de ser crianças por isso", emociona-se Aline.

Para André Tupinambá, professor de Orientação e Mobilidade da Sociedade de Assistência aos Cegos há dez anos, estimular a autonomia do cego, independentemente da idade, é garantir o direito à cidade. "Buscamos fazer com que ele possa sair da sua casa e conhecer outros ambientes com segurança. A pessoa com deficiência visual precisa de uma estrutura adequada pra se deslocar, de lugares onde tanto a população quanto o poder público deem condições ao ir e vir. Às vezes, elas pensam: 'não vou sair de casa, vou me arriscar por quê?' Mas a informação tem mostrado a elas que podem e que é direito", sentencia.


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