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Jornal O ESTADO
Sexta-feira - 16-04-2010
Fortaleza - Ceará - Brasil
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Com outros olhos


Entretanto, várias são as provas de que os cegos são pessoas capacitadas para desenvolver as atividades mais difíceis, inclusive atividades profissionais.

      “Uma esmolinha para um pobre cego”. É comum o pensamento de que a mendicância ou o isolamento social são as únicas saídas para um cego. As próprias famílias dos deficientes visuais, na maioria das vezes, procuram afastá-los da presença das outras pessoas, às vezes por vergonha, às vezes por querer proteger o cego contra o preconceito da sociedade. Entretanto, várias são as provas de que os cegos são pessoas capacitadas para desenvolver as atividades mais difíceis, inclusive atividades profissionais. Dessa maneira, separar o cego do meio social ou condená-lo a viver à custa de favores pode parecer uma alternativa pouco conveniente.

      Sem educação, os cegos tenderão a permanecer à margem da sociedade. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação de 1996 assegura aos deficientes uma educação especial, específica para cada deficiência. Entretanto, a pedagoga e coordenadora pedagógica Maria Adautina Soares de Souza diz que “é preciso que os sistemas de ensino deem suporte técnico e pedagógico às instituições. Só assim têm-se condições de oferecer um ensino de qualidade a todos, independente de suas necessidades”. Para a pedagoga, faltam equipamentos nas escolas para que a inclusão dos deficientes nos sistemas de ensino seja concretizada.

      Contudo, mesmo estando capacitados para competir no mercado de trabalho, as pessoas cegas estão em desvantagem, e isso acontece menos por causa de qualquer limitação física que eles possuam do que devido à existência do preconceito. As empresas ainda têm certo receio em contratar deficientes visuais, sobretudo os cegos totais. Dessa maneira, a inclusão social ainda não pode ser verificada completamente, e fica a dívida da sociedade para com esses indivíduos que tanto podem contribuir, mas que acabam por serem subestimados.

Um Visionário
      Uma vida no escuro, uma existência nas trevas, um mundo sem luz... O que você faria se não conseguisse enxergar? Eliano Gino de Oliveira, mais conhecido como Gino, é assessor de imprensa da Prefeitura Municipal de Fortaleza, deficiente visual desde que nasceu e fez isso: foi aprender Braile na Sociedade de Assistência aos Cegos (SAC); depois fez um curso de orientação e mobilidade para aprender a caminhar sozinho pela cidade; estudou datilografia e computação; entrou para um curso técnico na área de turismo no IFCE (antigo CEFET), mas acabou se formando em Comunicação Social pela UFC (Universidade Federal o Ceará); já foi candidato a prefeito de Fortaleza e, atualmente, além de trabalhar no setor de Comunicação da Prefeitura, está estudando Pedagogia na UECE (Universidade Estadual do Ceará).

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      Diante do computador, os dedos ágeis digitam com facilidade. Diante das outras pessoas, um jeito de conversar e se comportar capaz de conquistar muitos amigos; tanto é que todos que entram na sala de trabalho de Gino não deixam de comentar a incrível capacidade que ele tem de “enxergar”. Uma memória capaz de gravar as datas mais improváveis e os menores detalhes. Com o rádio como companheiro desde pequeno e o amor à leitura, Gino é um jornalista que se orgulha em já ter produzido, juntamente com a sua equipe, até cinco pautas por dia.

      Gino foi estudar na SAC (Sociedade de Assistência aos Cegos) ainda criança. “Lá era uma nova perspectiva de vida. Criado menino pobre do subúrbio, para enfrentar uma selva de concreto e opiniões”, lembra Gino. Na SAC, ele aprendeu com professores cegos a ler e a escrever em Braile, um sistema de leitura e escrita adaptado para deficientes visuais e no qual se utiliza o tato. Gino também teve lições de mobilidade e de como comportar-se em sociedade.

      Quando concluiu os primeiros anos de escola, teve que sair em busca de uma instituição de ensino que aceitasse estudantes cegos. A falta de preparo das escolas fez com que Gino se deparasse com muitos preconceitos, vindos inclusive dos professores. E, segundo ele, a situação não melhorou muito desde essa época. “Até hoje o sistema [de ensino] é quase o mesmo”, diz Gino.

      Ainda jovem, o assessor de comunicação fez um curso de locomoção na SAC, aprendendo a andar sozinho pela cidade apenas com a ajuda da bengala. Depois disso, estudou datilografia e até hoje é capaz de escrever no computador com uma velocidade impressionante. “Esses foram dois cursos [mobilidade e datilografia] que alavancaram a integração e a independência dos cegos em Fortaleza”, afirma.

      Aos 22 anos de idade, em 1975, Gino entrou para o curso de Comunicação Social, na UFC, fato que, pelo seu ineditismo, lhe rendeu uma colocação no Anuário do Ceará (publicação anual que fornece dados culturais, econômicos, sociais, geográficos, históricos, etc. sobre o Estado do Ceará). Mas, para fazer a prova do vestibular e ingressar na universidade, ele lembra que teve de enfrentar o preconceito de muitas pessoas, que não conseguiam entender como um cego seria capaz de fazer o vestibular.

      Na universidade, Gino também teve de lidar com muitas dificuldades, como a falta de textos adaptados para deficientes visuais. E a solução era pedir a ajuda dos colegas, que liam os textos e gravavam para Gino escutar. “Talvez eu não tenha aproveitado cem por cento, como um colega qualquer, mas eu conseguia ser um aluno ‘normal’”, diz Gino. E não parou por aí: instigado por uma amiga, fez vestibular para Pedagogia na UECE, curso no qual já está no sexto semestre e, mesmo assim, diz que ainda há professores que não sabem lidar com os deficientes visuais.

      Um mundo sem luz talvez seja o de quem não consegue ver nos deficientes visuais um ser humano como qualquer outro, que tem direito a estudar e trabalhar e é competente o suficiente para desenvolver qualquer atividade.

BOAS NOVAS
      Há quinze anos o professor Antônio Borges lidera o desenvolvimento do projeto DOSVOX em conjunto com o Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). DOSVOX é um programa de computador que, entre outras funções, permite ao deficiente editar e ler textos e ainda acessar a Internet. Borges começou a desenvolver esse software para um aluno com deficiência visual. “Eu tinha um aluno cego na UFRJ e através desse aluno foram feitos alguns desenvolvimentos, ele próprio trabalhando com a gente. E a coisa depois se expandiu, a gente começou a criar novos programas, esse aluno tinha outros amigos, o programa foi sendo usado por mais e mais pessoas”, diz Borges.

      Seguindo a linha de trabalho, os projetos que estão sendo desenvolvidos são ferramentas didáticas para que alunos com e sem deficiência visual possam interagir com maior facilidade na sala de aula. Para os estudantes universitários foi criado o PPT.VOX, um programa que orienta a elaboração de slides, geralmente utilizados na apresentação de trabalhos acadêmicos. Assim como no DOSVOX, uma gravação guia o usuário na montagem do slide, inserindo fotos e textos de acordo com os comandos do aluno. Na exibição do resultado a mesma gravação lê o conteúdo.

      JOGA.VOX é um aplicativo pensado para professores elaborarem jogos didáticos para seus alunos deficientes. As cenas são descritas ao jogador, que escolhe uma opção de resposta para o enigma. Interessante também é o fato de que os jogos trazem imagens se tornando igualmente atraente aos alunos que enxergam. Apenas os DOSVOX está disponível para download, os demais ainda estão em aperfeiçoamento. Acesse o endereço http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/

OS PIONEIROS
      A Sociedade de Assistência aos Cegos (SAC), que fica no bairro São Gerardo, rua Bezerra de Menezes, 892, é dividida em setores que cuidam da educação e da saúde dos deficientes visuais. Na área de educação, a organização não-governamental oferece gratuitamente salas de aula para o ensino fundamental e a educação infantil no Instituto Hélio Góes, com turmas de, no máximo, dez alunos.

      Além do Instituto Hélio Góes, a SAC mantém a Biblioteca Braille Josélia Almeida, que conta com um acervo de mais de três mil livros em Braille e mais de mil livros falados. A SAC possui, ainda, um centro de gravação de livros falados e uma imprensa responsável pela produção de textos em Braille, a Imprensa Braille Rosa Baquit.

      Além disso, a SAC conta com um centro de capacitação profissional e inserção no mercado de trabalho, e oferece cursos profissionalizantes como datilografia e massagem estética. No Centro de Estudos Dosvox Professor José Antônio Borges, as pessoas cegas aprendem como utilizar os computadores com auxílio do programa. A SAC também oferece cursos de orientação e mobilidade, que buscam fazer com que o deficiente visual possa realizar atividades comuns do seu cotidiano (como amarrar os cadarços dos sapatos ou pegar um ônibus) de maneira independente.

ACEC: “EM NOSSAS MÃOS, A MUDANÇA”
      A Associação dos Cegos do Estado do Ceará (ACEC) existe há vinte e três anos e a luta inicial que perdura até hoje é cobrar que os direitos dos deficientes visuais previstos em lei sejam realmente cumpridos. O passe livre nos transportes públicos foi uma das conquistas mais importantes, alcançada com manifestações, protestos e pressão no poder público. A empreitada na qual agora a entidade se lança é a conquista de uma sede própria, e, para isso, conta com a contribuição dos sócios, além do convênio com a prefeitura.

      Os serviços que a instituição presta vão desde ensino escolar fundamental e médio, com uma didática adaptada aos deficientes, a cursos profissionalizantes, como massoterapia, auxiliar de radiologia, além de ensino de artes, como teatro e violão, e aulas de inglês. Lá o cego aprende a orientar-se na rua e a realizar atividades da vida diária. Sobre isso o atual presidente da Instituição, Antônio Mota, afirma que é necessário um pouco mais do que simples técnica, é preciso desenvolver os outros sentidos. “No momento em que nos é tirado um sentido, os demais tornam-se mais amplos”, acrescenta o Presidente.

      Alguns professores da rede municipal de ensino procuram a entidade para aprender a como lidar com deficientes visuais em sala de aula. Pessoas sem restrição de visão também fazem o curso de orientação e mobilidade para sentir as dificuldades que o cego encontra cotidianamente.

      A ACEC tenta fazer colocação no mercado de trabalho. A responsável por esse trabalho, Fabíola Chaves, afirma: “A gente tem um trabalho de formiguinha mesmo, de pegar a lista de empresas, de ligar, mandar e-mail.”. Segundo ela, as portas para quem tem cegueira total ainda permanecem fechadas, as empresas dão preferência a quem tem deficiência parcial.

      Existe em Fortaleza uma rede de cooperação e trabalho para que as pessoas cegas possam efetivamente, trabalhar, estudar e ter autonomia na sociedade, mas para isso é preciso adesão de vários outros segmentos. Empresários que possam receber deficientes em seu quadro de funcionários. Professores da rede pública que se esforcem para encontrar meios de aprendizagem satisfatória. E as mais diversas pessoas que enxerguem além das limitações da cegueira, e descubram o que os deficientes já descobriram: as possibilidades.


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