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Jornal O POVO
Domingo - 31-05-1998

Fortaleza - Ceará - Brasil
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O adolescente na corrida (da vida) com barreiras


A passagem da infância para a idade adulta guarda complicações, dúvidas e descobertas. É um tempo gostoso e também difícil. Principalmente quando há outros obstáculos no caminho, como pertencer a uma determinada classe econômica, a uma raça ou ter alguma deficiência física. Isso não nos faz menos normais, mas a sociedade, muitas vezes, nos trata de maneira diferente. O adolescente rebate, encarando os problemas. Cai aqui e acolá diante do preconceito e da falta de cidadania, mas dá a volta por cima.

Parte importante do processo de desenvolvimento do ser humano, a adolescência não é uma das fases mais fáceis do mundo. Além da série de mudanças de ordem biológico-orgânica (puberdade), com ela seguem os fatores de ordem emocional. Ou seja, mudam-se as maneiras de sentir, ser e ver as coisas ao seu redor. São transformações pessoais: corpo, idéia, emoções e comportamento. É se olhar no espelho e dizer: "afinal, quem sou eu?"

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Se, de maneira geral, adolescer já implica numa série de conflitos e problemas de adaptação, o que dirá quando o indivíduo que está entrando nessa fase da vida não se enquadra nos chamados padrões normais impostos por nossa sociedade: quer seja no quesito cor/raça, saúde/deficiência ou no aspecto econômico. Pertencer a uma dessas três categorias trazem implicações para o adolescente, pois terão que enfrentar questões como preconceito, desrespeito à cidadania e outras barreiras.

Contudo, existe gente que, mesmo apesar das dificuldades oferecidas pela vida, encara a batalha. No melhor estilo "gente que faz", é possível ter gratas surpresas. Gabriela Régis Conrado completa 15 anos este mês. Há dois anos, perdeu totalmente a visão por conta de um vírus raro. Teve que, literalmente, reaprender a viver. "De vez em quando dava vontade de chorar. Mas fui mais forte que o problema. Acho que foi minha família e meus amigos um dos motivos da minha fortaleza. Eles sempre ficaram muito perto de mim", explica.

Gabriela, que esbanja contagiante simpatia, tem aulas de readaptação na
Sociedade de Assistência aos Cegos, entidade filantrópica que também teve papel decisivo na sua nova vida. Lá, ela tem aula de computação, braile e orientação de mobilidade (para aprender a andar sozinha). Assistentes sociais e psicólogos trabalham a ressocialização e recuperação da auto-estima. "A Gabi veio para se reeducar para a escola regular e também para enfrentar a vida lá fora", explica Cláudia Pinheiro, assistente social da entidade.

"A gente tenta fazer com que cada deficiente visual encontre seu espaço, fornecendo subsídio para ele aprender um ofício e alimentando sua auto-estima", conta Cláudia. Mesmo que o mercado de trabalho seja fechado, a deficiência não pode ser vista como um obstáculo. Muitos que saíram da Sociedade conseguiram emprego como telefonistas, secretarias, operadoras, em hospitais, órgãos públicos. "Eles conseguem um emprego não porque são deficientes, mas porque são capacitados", afirma.

Para uma portadora de deficiência, Gabriela surpreende os desinformados sobre seu dinamismo. Entre outras, faz a 7° séria na Escola Estadual Polivalente, no José Walter (é a única deficiente visual); tem reforço escolar em matemática e ainda faz natação. De quebra, está ensaiando para a quadrilha junina da Associação e ainda tem tempo para namorar. Gosta de todos os locais que freqüenta, pois se sente muito bem recebida. Comunicativa, diz conhecer muita gente. "O cearense é um pouco fuxiqueiro e curioso, logo quer me conhecer", entrega com bom humor Gabi, que deseja ser terapeuta ocupacional ou psicóloga.

Tiago de Oliveira Inácio, 16 anos, também já sabe o que deseja fazer: "Eu quero ser surfista profissional". Ele pega onda todos os dias. Já ganhou, inclusive, um campeonato mirim. Está na batalha do patrocínio, mas afirma que é difícil. Ele atribui a dificuldade mais pelo preconceito em relação ao esporte do que por sua cor. Tiago é negro. E "ser negro é assumir meu povo, minha raça, minha cor", afirma ele, acrescentando que se considera uma pessoa realista. Apesar de ter um dia-a-dia normal, sabe que encontra algumas barreiras por causa da cor.

"Quando me olham estranho, faço que não vejo. Quando falam alguma coisa, faço que não ouço. Mas, se for pra ofender mesmo, não levo desaforo", dispara logo Tiago, que vive com a mãe e mais três irmãos no bairro do Henrique Jorge, e estuda no Centro de Estudo Supletivo (CIES), no Centro da cidade. Faz supletivo. Trabalhava, mas como estava em situação irregular, por ser menor de idade e sem a documentação adequada, atualmente só estuda. E surfa.

Talvez essa aparente tranqüilidade de Tiago se deva à convivência com a mãe. Lucineide de Oliveira integra o Movimento das Mulheres Negras, entidade surgida na Universidade Estadual do Ceará (Uece), onde trabalha como secretária. O grupo é formado por funcionárias, alunas e professoras da Uece. A mãe militante faz parte ainda do Grupo Idun (sons da natureza, em dialeto africano), que trabalha a socialização pela música, dança e capoeira, congregando adolescentes e crianças negras do bairro. Já se apresentou em vários cantos da cidade. O filho Tiago participa na parte de dança e capoeira.

Fica claro que o diálogo e a interação com a família são fundamentais para a formação de um adolescente. Mas, quando esse diálogo é escasso, por absoluta falta de tempo, pra alguém que está correndo atrás da vida? Raimundo Cavalcante, 17, se ressente do pouco convívio com a família. Estudante do Colégio Municipal Filgueiras Lima, faz o 2° ano do 2° grau. E uma penca de atividades.

O lance é que Raimundo gosta muito do que faz, do seu dia-a-dia. Ele é estagiário no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). São quatro horas por dia, de segunda a sexta-feira, como técnico em processamento. A remuneração de R$ 140,00 vai toda para bancar suas despesas: fora o estágio e o colégio, ainda cursa cinema e câmera no Instituto Dragão do Mar. Adora cinema, principalmente a parte de produção.

Mora com pai (comerciante), mãe (do lar) e três irmãos, mas se orgulha em afirmar que se sustenta desde os 16 anos. As dificuldades financeiras não o desanimam. "Acho que venho me preparando bem, tô garantindo meu futuro, como na área de Informática", avalia Raimundo. E acrescenta que, na cidade, existem boas oportunidades: várias entidades promovem cursos, como o Dragão do Mar, o Cetrede, o Centro de Línguas da Prefeitura."As pessoas é que são muito acomodadas", critica. Polivalente, o jovem idealista pretende seguir a carreira de jornalista. Sem esquecer da informática, do cinema,...


Sobre o preconceito e a falta de estrutura da cidade

É óbvio que nem tudo são flores na vida desse pessoal. Todos têm suas mágoas, queixas, reivindicações. Tiago de Oliveira Inácio lembra, relutante, do episódio em que fez teste para um emprego (se recusa a dizer o nome do local) e foi aprovado. Contudo, segundo ele, quando o encarregado o viu, disse que não daria mais certo e sequer explicou direito o porquê. "Senti que foi por conta da minha cor", avalia Tiago, que não gosta muito de falar sobre o assunto.

"Ainda não sinto o preconceito. Só tenho raiva é das mulheres mais velhas que ficam falando coisas assim: 'Olha a coitadinha, é cega!' ", diz Gabriela Régis Conrado, que não aceita sentimentos como pena e atitudes superprotetoras. Não gosta também que falem baixo perto dela, perguntando coisas sobre sua cegueira para seus parentes. Prefere que perguntem diretamente a ela, sem constrangimentos.

Outro ponto que desagrada a Gabi é a absurdamente inadequada infra-estrutura da cidade, principalmente para os portadores de deficiência física. "As pistas e ruas são muito ruins, esburacadas, cheia de obstáculos, lama". Para a mãe de Gabi, dona Elza, o maior problema é a locomoção: ônibus lotados, linhas mal projetadas, e a falta de educação e respeito da maioria dos usuários. "Mas, a maior dificuldade mesmo é o nosso governo e os empresários, que fazem pouco caso da população", denuncia.

"Violência, falta de segurança, sujeira, risco de doenças, precariedade do transporte coletivo, trânsito. A cidade peca mesmo é pela falta de infra-estrutura", complementa Raimundo Cavalcante. Como cidadão, se ressente de Fortaleza ser tão mal cuidada.


Puberdade não é adolescência

Quando se fala em adolescência, uma palavra que geralmente vem acompanhada no discurso é "puberdade", muitas vezes como sinônimo. Na realidade, são duas coisas diferentes. "Puberdade são as transformações biológico-orgânicas por qual passam meninos e meninas a partir dos ll, 12 anos. Portanto, é um fenômeno universal", explica a assistente social e mestranda em Saúde Pública Lihana Bonfim. "Já a adolescência está ligada à questões biopsicossociais, isto é, ao contexto social, econômico, afetivo. Portanto, é um fenônemo cultural", esclarece.

A partir dessa diferenciação, é possível perceber que existem várias formas de adolescer - ligadas à classe cultural, econômica, geográfica. "Em algumas aldeias primitivas não existe a adolescência: o indivíduo 'pula' da infância para a maturidade", ilustra Lihana. Outro exemplo que nos é bem mais próximo é o das crianças carentes. Muitas, com 7, 8 anos de idade sustentam uma casa. Ou seja, a chamada para o mercado de trabalho certamente fará com que não vivenciem a adolescência em sua plenitude: lazer, estudo, e toda a segurança afetiva familiar e social a que têm direito como cidadãos.

E, nessa fase de auto-afirmação, de busca de uma identidade, a maneira como ele vai se perceber está muito relacionada à forma que a sociedade o percebe. "Se é uma sociedade marcada pelo preconceito, pela discriminação, ele vai se sentir excluído, se ele não se adequar aos padrões ditos 'normais'. Ele se olha como os outros o olham", afirma a assistente social. Para ela, existe toda uma forma de 'crescer' que caracteriza esses adolescentes. As diferenças sociais implicarão no modo como eles se construirão dentro dessa fase da vida.

Se bem administradas, as famosas "crises da adolescência" não são necessariamente ruins. Para Lihana, é uma forma de crescer: o conflito é necessário para se estruturar e partir para resolver suas questões. Agora, se desenvolver-se já não é fácil, ainda ter como "inimigos" a cor, a deficiência, a situação econômica só aumenta o stress, a tensão. "Passar por uma situação traumática como uma humilhação, rejeição, pode marcar para o resto da vida. É uma responsabilidade muito grande dos opressores de interferir na vida do negro, do portador de deficiência", alerta Lihana Bonfim.


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