SOCIEDADE DE ASSISTÊNCIA AOS CEGOS
60 ANOS
Ensinando a Ver o Mundo
Blanchard Girão
Páginas: 105-113


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ADERALDO,
O CANTOR DA ALMA SERTANEJA

     Lendário como o Padre Cícero, como Frei Damião, Virgulino Lampião, ou em termos mais recentes, tão famoso e querido quanto Luis “Lua” Gonzaga, o Cego Ade-raldo vagueou por todos esses rincões ora cinza, outra, ora ver-de-jantes do Nordeste brasileiro. Com sua rabeca melodiosa e os versos a brotar fáceis do seu estro, tornou-se uma referência regional, para ganhar depois notoriedade em todo o País.
     Aderaldo Ferreira de Araújo não nasceu cego. Veio ao mundo com a luz dos seus olhos em 24 de junho de 1878, numa ruazinha suburbana da cidade do Crato. Muitos o consideravam filho de Quixadá, onde se radicou desde os primeiros meses de vida.

     “Tenho aqui minha morada
     como residência e pouso
     Vivo alegre e cheio de vida
     Que não me falta conforto
     Penso que só saio daqui
     Um dia depois de morto” - versava para esclarecer a sua relação com Quixadá, onde o pai Joaquim Rufino Araújo, alfaiate de profissão, chegou naqueles finais do Século XIX com a mulher, Dona Olímpia e três filhos, dos quais Abelardo - o nome verdadeiro do famoso cego - era o caçula. Ninguém o chamaria por todo o sempre de Abelardo, e sim de Aderaldo, tomando a deficiência visual a condição de pré-nome.

Famoso Cego Aderaldo
Famoso Cego Aderaldo

     Órfão bem cedo, pois tinha poucos anos quando faleceu o pai, vítima de um derrame (congestão, como se dizia outrora) que o deixou inválido por muito tempo, o que levou Aderaldo, com tenra idade, a começar a lutar pela sobrevivência. Foi aprendiz de carpinteiro, auxiliar de ferreiro, trabalhou de um tudo, “só não fui guia de cego”, costumava dizer. E cego se tornaria já quando rapaz, aos 24 anos, abruptamente, em plena rua de Quixadá, após ingerir um copo d’água. Trabalhava então como ajudante de uma caldeira, sob alta temperatura. Sentiu uma sede imensa, o que o levou a pedir um copo d’água numa casa próxima. Mal acabara de sorver a água, sentiu uma dor inconmensurável na cabeça, uma sensação de aperto sobre os olhos, que pareciam receber uma carga de espinhos. Em minutos, a escuridão absoluta tomou posse dele. A vida seria outra dali em diante. O que fazer, sem a vista? Cansado, adormeceu e no sono sonhou que estava cantando. E foi assim, ao levantar-se, que pela primeira vez Aderaldo recorreu à inspiração poética que guardava no peito, fazendo, em versos, uma prece a São Francisco:

     “Ó Santo de Canindé
     que Deus te deu cinco chagas
     fazei com que este povo
     pra mim faça as pagas
     uma sucedendo as outras
     como o mar soltando vagas”.

     Milagre do santinho de Canindé, protetor dos pobres e desvalidos, ou fruto da necessidade de arranjar o pão de cada dia sem a luz dos olhos, Aderaldo tomou prontamente a decisão de que não iria estender a mão à caridade, encontrando na sua arte o meio de sensibilizar o povo a oferecer-lhe “as pagas como o mar soltando vagas”.
     Para felicidade sua, uma moça de Quixadá, sua conhecida, e apiedando-se de sua inesperada cegueira, doou-lhe um cavaquinho, instrumento que, sem ninguém para ensinar, aprendeu a manejar em curto espaço de tempo. Todo o seu talento musical se projetaria a partir daí. Além do cavaquinho, tornou-se exímio tocador de violino (rabeca), de bandolim e quantos outros instrumentos de corda lhe caíssem às mãos.
     Começaram as cantorias. Garante o pesquisador João Eudes Costa, autor de um cuidadoso estudo sobre Cego Aderaldo, que sua primeira estrofe, em som abafado, teria sido esta:

     “Ah! Se o passado voltasse
     todo cheio de ternura
     eu ainda tendo vista
     saía da vida escura.
     Como o passado não volta
     aumenta a minha tristeza
     só conheço o abandono
     necessidade e pobreza”.

     O desabafo de quem ainda não dimensionara toda a grandeza do seu próprio valor que iria, pouco a pouco, se afirmando nos desafios emocionantes nas feiras ou nos terreiros das fazendas, provocando lágrimas e gargalhadas dos circundantes, sempre em número crescente.
     De acordo com o mesmo depoente, Aderaldo teria lhe confessado que se sentia feliz após uma cantoria, quando recebia, além de alguns níqueis, muitas prendas - milho, feijão, queijo, farinha, rapadura, essas coisas típicas do sertão, que lhe garantiam o seu sustento e de sua mãe viúva. Tinha na mãe um esteio espiritual, um objetivo de vida. Cantava e versejava pensando nela, para dar-lhe o que precisava em sua solidão na velhice.
     Um dia, quando retornava risonho de um desafio de viola, com o alforje prenhe de mantimentos, deparou-se com a mãezinha querida agonizando. Morreria momentos depois, coberta pelas lágrimas derramadas dos olhos opacos do filho generoso.
     A pobreza era de tal monta, que - contava Cego Aderaldo - não dispunha de vintém para fazer o sepultamento da velhinha, que teve o corpo estirado sobre uma esteira de palha, enquanto ele saía transido de dor, em busca de meios para dar um enterro cristão à mãe que idolatrava.
     Soube que, no único hotel de Quixadá naquele tempo, estavam hospedados uns paroaras, como se chamavam os nordestinos que retornavam da Amazônia endinheirados.
     Os homens bebiam em grande algazarra, deles se aproximando, Cego Aderaldo para pedir uma ajuda destinada ao enterro da mãe. Um dos homens, muito embriagado, disse que só ganha dinheiro quem trabalha e zombou do pedinte humilhado. Mesmo assim, entre lágrimas, Aderaldo disse que diria uns versos para justificar a caridade e improvisou na hora:

     “Ó Deus,
     lá do alto do céu,
     de sua celeste cidade,
     ouça-me cantar a força
     devido à necessidade:
     aqui chorando e cantando
     e mãe na eternidade”.

     E continuou soluçante:

     “Perdoe-me minha mãe querida
     não é por minha vontade
     são as torturas da vida
     que vêm com tanta maldade
     chorarei meus sentimentos
     de vê-la na eternidade”.

     Os paroaras, mesmo bêbados, não esconderam a emoção e lhe deram 20 mil réis, dinheiro bastante para as despesas com o sepultamento.

RUMO À AMAZÔNIA

     A seca de 1915 provocou o esvaziamento dos sertões do Nordeste, em especial os do Ceará. Milhares e milhares de homens, mulheres e crianças embarcaram pelo porto de Fortaleza com destino a Manaus e daí para as impenetráveis florestas amazônicas. Cego Aderaldo foi um dos cearenses a ir embora, traduzindo em versos, aos que o escutam a bordo do vapor do Loide, as razões da sua partida:

     “Canto para distrair
     este meu curto poema
     vou fugindo da miséria
     que é este o penoso tema
     desta terra de Alencar
     deste berço de Iracema.
     Fugi com medo da seca
     Do pesadelo voraz
     Que alarmou todo o sertão
     Da cidade aos arraiás”.

     Não foi das mais longas a permanência de Aderaldo no Amazonas, voltando carregado pela saudade de sua terra sofrida que não tinha olhos para ver, mas um imenso coração para sentir. De sua passagem pelo “inferno verde”, restou um dueto que disputou com um cantador índio por nome Azubrin.

ENCONTRO HISTÓRICO

     Em 15 de fevereiro de 1924 aconteceu em Juazeiro um encontro memorável reunindo algumas figuras marcantes do Nordeste: Padre Cícero Romão Batista, Doutor Floro Bartolomeu, Virgulino Ferreira, o Lampião, e Cego Aderaldo.
     Lampião quis ouvir a cantoria do célebre violeiro e Aderaldo não se fez de rogado. Puxou a rabeca, tirou a nota mais apropriada e soltou o verbo:

     “Existem três coisas
     que se admira no sertão:
     o cantar de Aderaldo,
     a coragem de Lampião
     e as cousas prodigiosas do Padre Cícero Romão”.

     O temível cangaceiro envaideceu-se, abraçou Cego Aderaldo ofertando-lhe, na ocasião, umas moedas de vintém e uma pistola de estimação que carregava na cintura.
     Consta que Lampião, tirando as vezes de cantador, improvisou uns versos para Aderaldo:

     “Aderaldo seu pedido
     pra mim foi muito belo
     se você não fosse cego
     lhe dava um “papo-amarelo”
     tome esta pistola velha
     que matou Antonio Castelo”.

     A pistola e uma das moedas são entesouradas pelo pesquisador João Eudes, de Quixadá, que as recebeu de Aderaldo alguns anos antes de sua morte.

UMA ORQUESTRA EM CINEMA

     Aderaldo Araújo não casou, mas se tornou pai adotivo de, nada menos, que 26 crianças pobres do interior nordestino, a quem cuidou com carinho e devoção paternos, educando-os e encaminhando-os na vida. Com vários deles, que possuíam ouvido para música, formou uma orquestra de cordas, que animava as suas célebres apresentações por diferentes rincões do Nordeste.
     Já consagrado, não apenas nessa região, mas em todo o País, o Cego Aderaldo conseguiu fazer um vasto número de amigos; gente importante no Brasil como o ex-Governador Adhemar de Barros, de São Paulo, que lhe presenteou um projetor de cinema. Este projetor e a orquestra constituíam atrações nas noitadas de Aderaldo por toda parte. O mais curioso: o filme era mudo, mas o Cego fazia a narração dos episódios a partir do conhecimento prévio da história.
     Um dos filmes que os sertanejos mais aplaudiam era a “Paixão de Cristo”, um velho celulóide silencioso que, por anos seguidos, durante a Semana Santa, atraía centenas de espectadores. Num vilarejo miserável, certa feita, assistindo à fita, o cangaceiro “João Vinte e Dois” revoltou-se com as torturas impostas pelos judeus a Jesus Cristo. Sacou a garrucha e sapecou um tiro certeiro num dos soldados, vazando a tela improvisada...
     Outra curiosa passagem da vida de Aderaldo aconteceu quando da visita de Adhemar de Barros a Quixadá. Candidato à Presidência da República, o governador paulista fez questão de receber a visita do “seu amigo Aderaldo”, a quem já presenteara com o tal projetor.
     Aderaldo animou o encontro com suas cantorias, regadas a muita cerveja. Lá pelas tantas, sentindo que começava a ficar tonto com a bebida, chamou o guia e lhe disse em voz alta os versos que arrancaram a risada do Governador e demais convivas:

     “Menino vamos s’imbora
     que a cidade está em jogo
     é o guia puxando o cego
     e o cego puxando fogo”...

     Um dos 26 filhos adotivos de Aderaldo, Geraldo Rodrigues, guarda um repertório de histórias do pai, cuja memória venera fortemente. “Foi um ótimo pai, educador de todos os filhos que lhe obedeciam e lhe devotavam o maior respeito, dele recebendo em troca o maior carinho”, recorda Geraldo.

COM ROGACIANO LEITE E SÍLVIO CALDAS

     Cego Aderaldo, em suas andanças pelo Brasil, ia difundindo cultura e preservando as tradições da gente nordestina. Nessas viagens pressentia o despontar dos talentos que o sertão escondia, a exemplo do grande poeta e cantador Rogaciano Leite, que anos depois viria morar em Fortaleza, onde constituiu família, formou-se, publicou vários livros e militou na imprensa.
     Rogaciano andejou com Aderaldo por muitas vilas e povoados do Nordeste, antes de se tornar um nome consagrado das letras nacionais. O poeta e jornalista pernam-bucano tornara-se amigo de Sílvio Caldas, o célebre cantor romântico apelidado de “caboclinho querido do Brasil”, sendo dele parceiro na bela canção “Cabelos Cor de Prata”, que o cantor incluiu em seu repertório.
     Um dia Rogaciano levou Cego Aderaldo para conhecer Sílvio Caldas, que deixou gravado este depoimento formidável, em poder de Eudes Costa e com o qual, inclusive, ilustrou um extraordinário programa radiofônico sobre a vida e a obra do menestrel cearense, divulgado em emissora de Quixadá.
     Nesse depoimento, Sílvio Caldas conta que teve ocasião de assistir a uma cantoria entre Cego Aderaldo e Rogaciano Leite em determinado lugarejo. Com a palavra o saudoso cantor de “Deusa da Minha Rua”:

     “A feira estava animada, o povo em redor dos violeiros, vibrando a cada desafio. Rogaciano Leite, jovem e bonito, empolgado com a presença de muitas cabrochas atraentes na platéia, achou à certa altura de fazer uma provocação com o parceiro, dizendo mais ou menos assim:

     “Tô cantando com este velho
     este velho que não dá mais nada
     este velho todo enferrujado
     já devia estar na cama deitado”...

     Os jovens, mais as mocinhas, gostaram da tirada e cobriram de aplausos as palavras de Rogaciano, mas Aderaldo tinha a resposta na “ponta da língua”:

     “Andei procurando um besta
     e de tanto procurar um besta
     encontrei este rapaz
     que nem serve pra ser besta
     porque é besta demais”.

     Gargalhada geral. Cego Aderaldo liquidara ali mais um parceiro de viola, segundo o depoimento de Sílvio Caldas.

COM OS ANJOS LÁ NO CÉU

     Cego Aderaldo morreu no dia 29 de junho de 1967, aos 89 anos de idade. Partiu pobre como viveu. De herança para o filho Mário, que o acompanhou até o fim dos seus dias, uma casinha num bairro de Fortaleza que lhe fora doada pela grande escritora Rachel de Queiroz, uma das suas mais renomadas admiradoras, e outra em Quixadá. A rabeca, que adquirira no distante ano de 1916 por 200 mil réis, ele doou ainda em vida ao filho Geraldo Rodrigues.
     Verdadeiro mito dos sertões, Cego Aderaldo ainda hoje é mote constante dos desafios de violas que se fazem nos pequenos burgos do interior. O cantador Adalberto Ferreira, em uma de suas cantorias, afirmava que “vi o anjo Gabriel há tempo chamado e vi Cego Aderaldo cantando com os anjos lá do céu”.
     Uma das primeiras homenagens ao genial cantador sertanejo se encontra em forma de estátua, defronte à rodoviária de Quixadá, num trabalho do escultor João Bosco do Vale e por iniciativa de Alberto Porfírio, também cantador, e um dos mais denodados batalhadores pelo resgate da genuína cultura do Nordeste.

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