SOCIEDADE DE ASSISTÊNCIA AOS CEGOS
60 ANOS
Ensinando a Ver o Mundo
Blanchard Girão
Páginas: 11-16


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Hélio Góes, a pilastra da SAC

SÍNTESE DO IDEAL
DO APÓSTOLO DA CAUSA

     Formado no Rio de Janeiro pela Faculdade Nacional de Medicina em 1924, o Dr. Hélio Góes Ferreira devotou-se desde então a ampliar seus conhecimentos sobre as causas da cegueira e os meios de impedir a sua propagação. Era o médico a procurar os caminhos da ciência para enfrentar o mal que afeta milhões de criaturas no mundo. Não se restringia, porém, a esse aspecto terapêutico inerente à sua profissão. Via o outro lado – o drama social do cego, do homem privado da visão tendo de encarar a vida com essa imensa desvantagem em relação aos demais. Com essa preocupação, Hélio Góes, dezoito anos depois de formado, quis materializar o seu ideal, aquela chama que ele conduzia no coração desde a sua juventude e que crescia à proporsão que penetrava no mundo de trevas da sua clientela. Foi este o impulso que o levou a fundar, em 1942, a Sociedade de Assistência aos Cegos, tornando-se, até o fim dos seus dias, em 1976, o apóstolo da grande causa.

Hélio Góes Ferreira
Hélio Góes Ferreira

     Plaqueta editada pela Imprensa Universitária do Ceará, em 1956, reproduz ensaio que o incansável missionário publicou no nº 3 – Ano II – da "Revista do Centro de Estudos" do extinto Departamento Estadual de Saúde, no qual expõe a estrutura do seu sonho, a partir da vivência clínica e da cultura médica, no sentido de criar condições de adaptação do deficiente visual no contexto comunitário.

     A leitura desse trabalho, vinte e seis anos após a sua morte, nos permite penetrar toda a dimensão do projeto de Hélio Góes em favor do homem cego no Ceará e, assim, entender as razões pelas quais tanto batalhou pela implantação e consolidação da Sociedade de Assistência aos Cegos, hoje uma obra da maior expressão sob qualquer ângulo em que for analisada, dentro de seu plano global de atendimento ao deficiente visual e seu processo de integração à sociedade.

     Eis uma síntese desse extraordinário ensaio, certamente a essência do pensamento do Dr. Hélio Góes Ferreira sobre o magno problema:

     "É desagradável para nós oculistas permanecermos impotentes diante de seres humanos irremediavelmente sentenciados à cegueira. E por ser assim é que, sentindo de perto a tragédia dos que perderam a visão, inspirados nos altos princípios da solidariedade humana, vimos ao seu encontro para minorar-lhes os padecimentos, infundindo em suas almas um pouco de alegria e confiança.

     Já que não podemos dar visão material aos desprovidos dela, a esses desafortunados que nem uma palavra de conforto os alivia da sua tortura, de um certo tempo para cá temo-nos preocupado em lhes dar ao menos a visão espiritual, proporcionando-lhes educação intelectual e técnico-profissional, trabalhando com afinco em prol de sua causa. A luta é espinhosa e árdua, mas verdadeiramente necessária e indispensável.

     O cego é um ser humano e como tal deve ser tratado, não posto à margem da sociedade como um ente inútil. Agindo e reagindo de acordo com os seus sentimentos, os cegos pouco a pouco vão conquistando o lugar que lhes está reservado no meio em que vivem. Procurando em sua desdita suprir a luz dos olhos pela luz do espírito, o cego instruído e educado torna-se um elemento útil a si, à família e à sociedade. Braille, na França, Helen Keler, nos Estados Unidos, Mamede Freire e Espínola Veiga, no Brasil, Esmeraldino Vasconcelos, no Estado do Ceará, tantos e tantos cegos de valor, honram a espécie humana pelo talento, pela capacidade de trabalho, pois que em sua vida se tornaram exemplos para outras vidas e, tocados pelo espírito de fazer o bem, fizeram do conceito de solidariedade humana um princípio e uma religião, conquistando perante o mundo a admiração dos homens, transmitindo pela instrução e pela educação, às gerações d’agora e às futuras, a mensagem de confiança e a fé nos destinos humanos".

     Nestas linhas, com a mais cristalina clareza, Hélio Góes define a sua segura visão sobre o problema, vendo-o pelo prisma da capacitação como forma de amenizar o drama pessoal do portador da cegueira.

     A seguir, em sua monografia, o fundador da Sociedade de Assistência aos Cegos e do Instituto que hoje se identifica pelo seu nome imorredouro, apresenta estatísticas alarmantes, valendo-se do recenseamento nacional de 1958, que acusara o número de 75.000 cegos no Brasil.

     "Desses infelizes – assinalava ele – uma percentagem mínima é atendida pelos institutos, ligas, asilos, etc, vivendo o restante à própria sorte, esmolando nas ruas, sem amparo, sem conforto, na mais extrema miséria."

     Era esta nódoa que ele sonhou apagar em seu onírico projeto daqueles princípios dos anos 40, para o que encontrou um farol luminoso na sua Sociedade de Assistência aos Cegos.

     Analisava no aqui citado estudo, também, a face econômica do problema, ao comentar:

     "A cegueira, como causa da invalidez, ensina Barriére, implica numa subtração ao capital das energias coletivas, com a agravante de que a sociedade que sofre esta perda contrai, ao mesmo tempo, uma nova obrigação, que é a de prover o sustento dos cegos.

     A nossa evolução nesse particular vai se fazendo naturalmente com a fundação de estabelecimentos para educação dos cegos, com métodos pedagógicos apropriados aos que não vêem, racionais e com base científica positivada".

     Este o modelo, portanto, que estava introduzindo na sua amada Sociedade de Assistência aos Cegos. Métodos pedagógicos modernos, uma maneira própria de cuidar do deficiente visual – eram as metas, difíceis de conquistar. Mas o foram, graças à pertinácia, ao idealismo, à força de vontade de Hélio Góes e seus companheiros de jornada.

     O trabalho nos mostra alguns desses métodos a serem aplicados para ofertar a "Luz do espírito" aos destituídos da luz dos olhos. Para tanto, espelhava-se no professor cego, Espínola Veiga, cujo plano, transplantado para o Ceará pelo Instituto dos Cegos, incluía aula de educação dos sentidos, "no intuito de desenvolver ao máximo a acuidade do tato, do ouvido e do olfato", cabendo ao educador a tarefa de estimular no discípulo a sua capacidade de suprir a deficiência; aula de aquisição de imagens, destinada a levar ao cérebro do aluno o maior número possível de imagens ("partindo das imagens comuns nos reinos da natureza e dos objetos e cousas da vida, esta aquisição pode estender-se à escultura e à arquitetura nos anos subseqüentes"), advertindo que nesta aula deve o professor "ter em vista que o tato não compreende perspectivas", daí por que "só a forma integral o satisfaz (ao aluno cego), sem os disfarces dos desenhos, da pintura e do colorido. Há uma "arte de apalpar" que cumpre saber desenvolver no educando para que ele saiba compor as imagens com os dados analíticos de sua inspeção tátil; aula de gestos e costumes, acentuando – "o professor tem necessariamente de ser vidente, auxiliado pelas experiências de um cego educado. A atitude, a aparência, os gestos e a maneira de agir do cego no meio social, quase todas diferenciadas do vidente e peculiares à falta de vista, induzem a pressupostos falsos sobre o cego e a cegueira. Desta aula dependerá, em grande parte, o êxito futuro dos educandos na vida prática". Finaliza este item com a observação de que "a hora do recreio e da refeição constituem momentos azados para essas proveitosíssimas lições."

     O programa inspirado no Prof. Veiga incluía igualmente aulas de letras (o mesmo programa das escolas públicas regulares). Para o cálculo só era admitido o uso do cubarítimo (o sistema Sorobã ainda era desconhecido aqui); aula de canto, de música, de catecismo.

     Consciente das carências com que se debatiam as instituições, como a sua, para executar tão amplos programas, o estudo do Dr. Hélio Góes, agora amparando-se em sugestões de outro cego, professor Mamede Freire, apresentava uma série de reivindicações da comunidade de deficientes visuais, como a criação do Departamento Nacional de Assistência aos Cegos, instituição destinada a orientar todas as demais entidades envolvidas na matéria; a isenção de qualquer ônus federal, estadual e municipal às instalações e produções de oficinas de indústrias manuais e dos pequenos negócios de propriedade de cegos alfabetizados ou não, ou de propriedade e a cargo exclusivo de instituições de assistência aos cegos; a extensão da assistência escolar aos pequenos cegos, co-educando-os com as crianças normais nas escolas públicas, como há muito se pratica em diversos países com excelentes resultados e a oficialização do método Braille nos institutos de educação do País e nos estabelecimentos aos mesmos equiparados.

APOIO DA SOCIEDADE

     No fecho de seu irrepreensível trabalho ensaístico, o Dr. Hélio Góes escrevia:

     "Para que, no entanto, o cego possa trilhar o bom caminho, torna-se necessária a ajuda da sociedade e dos poderes públicos, ajuda que dia a dia deve ampliar-se no sentido de decidir a sua sorte.

     É voz corrente que o cego tem faculdades extraordinárias para a música, para a poesia, etc. O cego não possui essas faculdades, pois que, sendo a faculdade uma virtude moral, não é privativa do cego.

     A estrutura espiritual do cego obedece às mesmas contingências de formação do vidente, isto é, meio, ambientação, educação, cultura, etc que, por conseguinte, pode apresentar indistintamente formas superadas ou estruturas deficientes. Realmente, grande número de cegos se dedica à música, à poesia, não por virtuosismo imanente aos privados da visão, sim em virtude da necessidade e dos seus problemas não solucionados. E, quando lhes falta a educação técnico-profissional, a fim de que, bem orientado, ele se capacite para o trabalho, eles procuram tocar qualquer instrumento e, fazendo música barata nas feiras e lugares públicos, chamam a atenção para sua desdita, dando assim um triste espetáculo do seu empobrecimento moral, numa demonstração patente do abandono em que vivem.

     E assim, com o seu ritmo descolorido e triste, vão espalhando a crença de que os cegos têm faculdades extraordinárias para a música. Há também o que se chama a "esmola organizada", cegos inconformados e rebeldes que se agrupam, fundando certas sociedades a fim de, angariando sócios, sem orientação e descortino, na maior vagabundagem, explorarem a caridade pública e até os poderes públicos, gastando em farras e bebedeiras o dinheiro recolhido.

     Estava nestas últimas palavras a condenação ao estado de "abandono" em que eram atirados os deficientes visuais, mazela contra a qual se insurgia o pensamento lúcido e corajoso de Hélio Góes Ferreira há sessenta anos.

     O quadro atual difere profundamente deste com que se deparava, e se revoltava, o fundador da SAC. Não há quase mais cegos vivendo da exploração da caridade pública e o Instituto dos Cegos Hélio Góes Ferreira empenha-se em dar não somente uma capacitação profissional, mas uma nova estrutura moral, um mais robusto estofo de dignidade humana a essas criaturas que, pouco a pouco, rompem o estigma da deficiência física e encaram a vida com desenvoltura em pé de igualdade com as pessoas normais, em diferentes setores de atividade.

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