SOCIEDADE DE ASSISTÊNCIA AOS CEGOS
60 ANOS
Ensinando a Ver o Mundo
Blanchard Girão
Páginas: 81-96


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CAPÍTULO II

ESTÓRIAS
DO DIA-A-DIA
DE UMA EPOPÉIA

     Toda a história, com suas estórias, da Sociedade de Assistência aos Cegos bem que poderia ser resumida num gráfico. Jogue-se na prancheta a curva acentuada entre a situação da cegueira no Ceará aí pelos anos quarenta e a de hoje. O desenho revelará a profunda diferença para traduzir a verdadeira expressão da obra desenvolvida por esta entidade nestas seis décadas da sua existência.
     Cego pobre vivia de esmolar. Alguns se valiam de uma rabequinha, de uma sanfona, poucas vezes de um instrumento de sopro, para despertar a atenção dos transeuntes e implorar-lhes a generosidade de um níquel. Puxado por um guia (e havia até mesmo a “profissão” de guia de cego), perambulava pelas feiras, pelos patamares das igrejas, por onde houvesse uma maior concentração de gente.
     Em qualquer circunstância, o deficiente visual era um ser à margem, um pobre infeliz condenado às trevas irreversivelmente e merecedor, por isso, da piedade das outras criaturas. Ao cego pobre faltava o principal da existência: a dignidade humana.
     Eis que a primeira meta delineada pela Sociedade foi extirpar-lhe esse estigma do pobrezinho pedinte, prática que se transformava em hábito, mais ainda, em vício, através do qual as suas famílias e ele próprio encontravam os recursos para a manutenção.
     Pôr termo à profissão de cego mendigo se tornou, pois, o primeiro objetivo, acompanhado em paralelo por outro, qual fosse o de dotar o deficiente de uma qualificação qualquer, capacitando-o ao exercício de uma atividade decente.
     A esta altura, sessenta anos depois de estabelecidos esses projetos, o que se constata agora. As ruas estão limpas, quase que por completo, da mendicância dos cegos. E eles são professores, advogados, maestros, engenheiros, economistas, quando não esplêndidos artesãos, ou fisioterapeutas, massagistas, locutores de rádio. Ainda não se tem notícia de um médico, entre nós. Mas não tardará que isso aconteça, pois cada vez se alargam os horizontes e ampliam-se as esperanças dessas pessoas, graças às condições que foram criadas pelo seu Instituto, proporcionando-lhes uma educação básica e especial de nível, inclusive oferecendo-lhes algumas alternativas profissionalizantes, no campo da música, da telefonia, da produção artesanal de certos objetos. Curioso é constatar-se que são raros os que estão no subemprego, como vendedor de gasparinhos lotéricos, muito comum noutros tempos.
     Porém, muito acima disso, há nessa curva ascendente do cego o aspecto psicológico. Ele ganhou segurança, convenceu-se de que é um ser social útil e competente, apto a realizar as mais diferenciadas atividades em pé de igualdade com o mundo dos videntes.
     Mas para se chegar a tal ponto, muitos ofertaram sangue, suor e lágrimas. Pessoas que se entregaram de corpo e alma à bela missão, muitas deixando em segundo plano os seus interesses particulares, compondo as estórias curiosas e apaixonantes do dia-a-dia dessa verdadeira epopéia, que foi a implantação, a sobrevivência e a conquista da vitória que se retrata na grandeza da obra em pleno curso nos dias presentes.
     As estórias aqui reunidas, à margem da História (com H) da instituição, é uma diminuta amostra de como se processou esse trabalho e uma modesta homenagem àqueles que o executaram por longos anos.

UMA MULHER INESQUECÍVEL

Maria Prata Galvão
Maria Prata Galvão

     Não se chamava Rebeca, a do romance famoso, mas foi também uma mulher inesquecível. Atendia pelo nome comum e lindo de Maria! Maria Prata, bem poderia ser Maria de Ouro, tal o tamanho da sua generosidade, do seu amor aos semelhantes, particularmente aos atingidos pela fatalidade da cegueira.
     Por volta de 1945, Maria Prata agregou-se à então Casa dos Cegos. A primeira meta pretendida pela Sociedade era retirar das ruas o cego na condição de mendigo. Tornava-se não só necessário abrigá-lo, mas protegê-lo, compensá-lo pela perda dos óbolos que antes arrecadava. Dentro da SAC as correntes se dividiam entre os que desejavam a criação de um internato e os que pensavam de modo diverso. Dona Maria Prata viabilizou a implantação do albergue. Para tanto, abandonou praticamente tudo. Devotou sua vida àquela tarefa que, com certeza, lhe assegurou cadeira cativa no céu onde hoje habita.
     O internato, entretanto, não deveria ser um simples “depósito” de indigentes sem vista, retirados da men-digagem. Dentro da filosofia natural que trouxe do berço, a SAC olhava horizontes bem mais largos para os deficientes. A idéia era transformá-los de pedintes em cidadãos, outorgar-lhes uma auto-estima que a deficiência apequenara ou mesmo destruíra. Como fazê-lo?
     Maria Prata contribuiu sobremodo para se encontrar resposta a esta indagação. Os cegos não eram mais aqueles “ceguinhos” a implorar e a provocar a piedade dos outros. Estavam ali, sob suas asas, moradores da residência que a SAC lhes destinava, não apenas para se absterem de mendigar, mas para aprender algo, se instruir, tornarem-se homens úteis.

     Foi assim, com a presença constante e protetora de Dona Maria Prata, que de simples dormitório ou albergue o já agora Instituto dos Cegos, no casarão de estilo clássico localizado no Alagadiço, se tornou de verdade um estabelecimento de recuperação moral e profissional do destituído do sentido da visão.
     Enquanto os dedicados diretores, os próprios médicos e outros servidores, davam expediente, reservavam parte de suas horas muitas vezes sacrificando o lazer, Dona Maria Prata oferecia tempo integral, a plenitude de suas horas, dos seus dias, dos seus anos de vida em benefício daqueles assistidos.
     Brotaram, de modo paulatino e contínuo, as diferentes unidades: a escola curricular, a princípio atendendo mais os cegos adultos, para depois se tornar na atual e dinâmica escola especializada, uma das mais completas do País; a fábrica de vassouras, as oficinas para pequenos trabalhos manuais, as aulas de música. Enfim, com o apoio na abnegação dessa mulher inesquecível - Dona Maria Prata - a Sociedade e seu Instituto empreenderam a caminhada que festeja a alegria da vitória nestes 60 anos de existência.

OS COQUEIROS DO RIQUET

Aluisio Riquet
Aluisio Riquet

     Folheando a História com H da nossa amada SAC, percebe-se, sem demora, que durante longos anos a penúria foi marca predominante da Casa. Ficou visto também que, nas mais constrangedoras situações, o grupo que a idealizou não perdeu o entusiasmo, fazendo verdadeiros malabarismos para não permitir o barco soçobrar. Cada qual que pensasse numa forma de fazer finanças, arranjar dinheiro de qualquer maneira. Um dos mais empenhados nessa lida era o tesoureiro Aluisio Riquet, em última análise o responsável direto naquela fase, pela sobrevivência da entidade.
     Dentre muitas criações do Riquet, com essa finalidade, uma tornou-se célebre, ensejando algumas conjunturas estranhas e divertidas, enquanto pingavam as moedas para sustento da Casa: eram os “coqueiros do Riquet”, como se tornaram conhecidos. Consistiam numa espécie de leilão entre rotarianos e outros amigos da novel Sociedade, que, a pretexto de trocarem um pouco de conversa fiada, se encontravam no casarão da Bezerra de Menezes - a então Casa dos Cegos - para nessa oportunidade exercitar seu espírito humanitário.
     Os amigos se divertiam com a brincadeira, enquanto os cofres do Riquet iam recebendo o dinheirinho indispensável à mantença da instituição.
     “Aquele coco é meu” - gritava um. E logo outro contestava. “Quem vai beber a água dele sou eu”!. E, como em todo leilão que se preza, o produto leiloado ia subindo de valor.

     Prática saudável, dentro do mais forte sentimento de solidariedade, o “coqueiro do Riquet”, ao lado da fabricação de vassouras, das doações, dos festivais com ingressos passados na indústria, nos bancos, no comércio, nos consultórios e até gabinetes de beleza, pelas valorosas damas rotárias da Casa da Amizade, foi uma das fontes de vida da Sociedade de Assistência aos Cegos em seus primeiros tempos.

O PORÉM...

     Há sempre um porém nos fatos da existência. E o “coqueiro do Riquet” não estava imune a isso. Aconteceu que os cegos abrigados no casarão doado pela LBA, e que haviam sido retirados da mendicância, entenderam que aquele dinheiro arrecadado nos leilões de cocos deveria pertencer-lhes. Não atinavam para os benefícios que já recebiam da Sociedade: casa, comida, assistência médica e até pequena remuneração para compensá-los das esmolas que deixavam de colher. Queriam mais. Queriam a renda dos leilões. As explicações não os convenceram e eles armaram então um diabólico plano de vingança. Ao rememorá-lo, o propósito é o de mostrar que, como qualquer outro ser humano, o deficiente visual também carrega no coração um pouco de vírus da maldade, mesclado ao conteúdo bom da alma do homem.

SABOR ESTRANHO

     Vejam que pensamento malsão da mente daquelas cria-turas. Como de costume, a turma de rotarianos compareceu para ajudar o companheiro Riquet no seu afã de arrecadar fundos para manter a entidade protetora dos cegos. O leilão estava animado, cada coco valendo até dez vezes ou mais o seu valor real. Lá pelas tantas, alguém observou algo estranho no sabor da água. “Este coco tá com um gosto diferente, a água salobra. Me dá outro aí”... Repetiu-se a mesma coisa. Ainda houve um dos presentes a gracejar: “Você tá sentindo é o gosto das 10 pratas que pagou no coco”, e a gargalhada teria sido geral, se logo mais um também notasse o esquisito paladar da água.
     A investigação concluiu, com relativa brevidade, que os cegos haviam injetado nada mais nada menos do que xixi nos cocos, como maneira de protestar contra a negativa de ser a renda dos leilões a eles destinada.
     Valendo-se de uma agulha de aparelho de injeção, furavam a superfície da fruta e nela introduziam a urina.
     Com algumas medidas disciplinares fortes, foi obtido o convencimento de que a Casa de Cegos se destinava a assisti-los da maneira mais abrangente possível, inclusive pagando para tê-los em sua dependência, mas que a Casa não lhes pertencia, não era propriedade deles.
     Pelo visto, observem quanta incompreensão e quanta barreira tiveram de ser vencidas para que a altaneira e benemérita instituição galgasse a posição que ostenta presentemente, muitas décadas após os “coqueiros do Riquet”.
     Por essa e muitas outras razões, o grande bastião da SAC, Dr. Hélio Góes Ferreira, defendeu e conseguiu de seus pares a mudança do nome da Casa dos Cegos para Instituto dos Cegos do Ceará, hoje mui justamente denominado “Instituto dos Cegos Dr. Hélio Góes Fer-reira”.
     Esclareça-se que os cocos leiloados haviam sido colhidos de véspera e colocados na geladeira que Dona Maria Prata, a nunca esquecida dirigente da Casa, que os guardava cuidadosamente para o encontro dos rotarianos. E era precisamente aí, no período noturno, que os cegos promoviam sua satânica travessura.

VEXAME COM A PRIMEIRA-DAMA

     As festas do calendário da Sociedade de Assistência aos Cegos, em suas datas maiores, como a de sua fundação e o Natal, assinalam sempre a inauguração de um melhoramento, dentro desse processo evolutivo que é a marca característica da entidade.
     Uma dessas inaugurações foi a da quadra de futebol de salão, para cuja consecução os dirigentes não mediram esforços, recorrendo a quantos amigos pudessem ajudar na obra. O saudoso engenheiro e arquiteto Luciano Pamplona desenhou a planta, detalhando tudo para atender ao tipo especial de usuário. O Sr. Luís Gonzaga Mota, proprietário de uma indústria de mosaicos, produziu um apropriado para deficientes, doando-o generosamente; o então diretor do Detran, major Rinaldo Cisneiros, presenteou as arquibancadas. O mutirão, como em muitas outras oportunidades, funcionou com presteza. A quadra afinal ficou pronta. A inauguração contaria com a presença das mais altas autoridades, a começar do próprio Governador do Estado, na época o coronel César Cals de Oliveira Filho, do Prefeito de Fortaleza, engenheiro Vicente Fialho, do Presidente da Assembléia, do Tribunal de Justiça, enfim do mundo oficial em peso. Seria uma festa de estilo. Aí, já na véspera, uma falha foi notada: faltavam os mastros para o indispensável solenismo do hasteamento das bandeiras. Nesta hora, falou o cel. Torres de Melo, comandante do CPOR, quartel vizinho à sede da SAC, e já então inteiramente entrosado com a Sociedade.- “Não tem problema sem solução- disse ele. E já tenho uma para os mastros”.

Atletas cegos ganham medalhas em conquistas esportivas
Atletas cegos ganham medalhas em conquistas esportivas

     Torres de Melo, homem prático e avesso às delongas burocráticas, chamou um soldado e mandou convocar um capitão daquela unidade militar. Em minutos, perfilado, o oficial estava diante do seu superior, esperando as ordens, que foram prontas e definitivas: “Capitão, o Sr. pegue uma viatura grande, dirija-se àquela estrada que liga Mondubim a Messejana, onde ontem eu vi um monte de postes de aço que a Coelce está substituindo por outros de cimento armado. Vá lá e retire três, depois a gente presta conta”...
     “Mas Coronel - ponderou o jovem Capitão - será que vão permitir isso?” Não vão criar caso para impedir a gente de trazer os postes?”
     “Você acha mesmo que alguém irá impedir uma ação do Exército?
     Por via das dúvidas, leve uns homens armados que é para impor mais respeito” - retrucou o comandante.
     Assunto encerrado. Não tardou e o Capitão chegava com os três postes de aço, todos do mesmo tamanho. E aparecia um outro problema. Era preciso diminuir o tamanho de dois deles, pois o do centro, destinado ao Pavilhão Nacional, tem legalmente de ficar mais elevado. Serrar não havia mais tempo.
     “Isto é lá problema, meu povo” - falou Torres de Melo. - Basta cavar dois buracos mais profundos e um mais raso. Pronto. Estará conseguida a diferença de altura necessária”.
     A toque de caixa, a colocação dos postes, aliás, dos mastros, foi providenciada, numa operação civil-militar de pleno sucesso.
     Havia ainda um detalhe: a base. Era necessária uma sólida base de concreto para sustentar aqueles gigantes de aço enterrados no chão. Pedreiros convocados, cimento e brita à mão, a obra ficou concluída pela madrugada, apenas algumas horas antes da grande solenidade.
     Às 8 horas, lá estavam o Governador e demais autoridades. Também a Primeira-Dama, Dona Marieta Cals, para o ato cívico do hasteamento dos pavilhões. Foi então que se deu um imprevisto: ao acessar à base dos mastros, onde o cimento ainda não secara de todo, a Primeira-Dama enterrou o salto do sapato, retendo-se, e ficaria imóvel, caso persistisse em ficar calçada. Acudiram pressurosos, além do marido Governador, os dirigentes da Sociedade, apresentando-lhe desculpas pelo vexame.
     Nada impediu, contudo, o brilho do acontecimento. Os meninos cegos deram o seu show de bola, acertando as redes com mais precisão do que certos atacantes dos clubes profissionais...

MIGUELINO, UMA ATRAÇÃO À PARTE

     O desfile, após o hasteamento das bandeiras, as arquibancadas completamente tomadas por familiares, aquele alarido feliz, uma manhã de alegria plena na acolhedora Casa dos Cegos. E para completar, algo muito singular: o cego Miguelino, figura popular na comunidade local, tomou o microfone e se fez o narrador de tudo. Da solenidade, do desfile, do jogo. Como? Aí façam as suas conjecturas sobre de que recursos se valeu o deficiente Miguelino para dar uma “visão” daquele risonho acontecimento cívico-esportivo. Verdadeiramente, o Miguelino se tornou uma atração à parte na memorável festa.

CEGOS DE OLHOS SÃOS

     Múltiplas são as patologias que culminam com a cegueira. Mas existe um outro tipo de cegueira que não está catalogada nos compêndios médicos. É aquela dos que têm a vista saudável, mas não incapazes de ver um palmo além do nariz.
     As estórias que compõem o contexto histórico da SAC revelam aqui e ali a presença desses indivíduos de visão turva, ou sem visão nenhuma, diante do que deveria ser o belo destino do homem sobre a terra, tendo por meta a solidariedade.
     Aconteceu muitos anos atrás. A SAC e seu Instituto dos Cegos apenas engatinhavam. Entretanto, já apresentavam resultados expressivos no trabalho assistencial a que se propunha. No campo oftalmológico, recebiam numerosos pacientes para tratamento, dentro das limitações do pequeno “Preventório Cláudio Martins”, unidade que funcionava graças ao apoio desse inesquecível homem público, intelectual e figura marcante da vida rotária no Ceará.
     Um dia, o casarão do Alagadiço foi assaltado por ladrões, que, entre outras coisas, levaram a caixa de lentes destinadas aos exames de quantos ali se dirigiam em busca do diagnóstico e da terapia necessária.
     Sem recursos em caixa, na clássica pobreza em que atuava, a Sociedade decidiu apelar. E seu denodado Presidente na época, Dr. Waldo Pessoa, procurou uma ótica renomada da cidade formulando-lhe o apelo para que doasse uma caixa de lentes a fim de não permitir a paralisação do atendimento aos pobres que eram cuidados no Preventório. E ouviu do proprietário do estabelecimento, homem de posses, um sonoro não, na mais absurda indiferença a um problema social sério, ainda mais do que é hoje.
     Estava-se frente a frente com um cego de olhos sãos, insensível e obtuso, incapaz de dimensionar a grandeza do gesto de confiança, dosado de uma certa humilhação, de quem fora pedir-lhe a generosidade. Essa ótica, que gozava naquele tempo de muito prestígio em Fortaleza, foi definhando e acabou cerrando as portas na escuridão de sua cegueira social.

QUINZE ANOS PARA O DESPEJO

     Durante certa fase, a Sociedade encontrava num conjunto de modestas casas de sua propriedade, que alugava, parte dos recursos essenciais à sua sustentação. Depois, os diretores concluíram que os aluguéis, defasados pela inflação galopante e emparedados pela Lei do Inquilinato, não ajudavam em nada na situação financeira. Resolveram então procurar acordos com os inquilinos para desocupar os imóveis e, em seu lugar, erguer outras dependências, dentro do plano de expansão que foi sempre acalentado por seus abnegados idealizadores.
     Houve, todavia, uma exceção. Um dos inquilinos resolveu resistir, obrigando a entidade a recorrer à Justiça. Ação proposta, motivos bem descritos, começou a subida do calvário forense. Os anos iam correndo, o inquilino teimoso debaixo do seu teto, pagando já então, com o passar do tempo, aluguéis meramente simbólicos. Coisas assim de quatro mil réis, quando a moeda já era cruzeiro e até cruzeiro novo. Nada menos de quinze anos decorreram para que, afinal, sob outros textos legais, um juiz proferisse a sentença final de despejo. O homem morou gratuitamente - tal a insignificância que depositava em juízo - durante quinze anos, entravando o crescimento de uma organização da mais elevada importância para a comunidade em especial para os carentes.
     Mais uma vez, deparávamo-nos com um caso típico de cego de olhos saudáveis, mas de pensamento opaco.
     Em compensação, as damas rotárias, com sua Casa de Amizade, entregavam-se a novas campanhas em favor da Instituição. Uma das mais valiosas promoções foi a concorrida Festa das Nações, que reuniu milhares de pessoas durante sua efetivação. O dinheiro arrecadado foi totalmente destinado à Sociedade, que ainda pensou em aplicá-lo em poupança para garantir o atendimento de suas despesas corriqueiras. Prevaleceu, no entanto, o ponto de vista dos mais arrojados: o resultado auferido da Festa das Nações, deveria ser empregado na construção do futuro hospital da Casa. E assim aconteceu. Dr. Hélio Góes, que não tinha como realizar as cirurgias no Preventório, valendo-se da Santa Casa de Misericórdia, para tal fim, teria agora o próprio hospital do organismo nascido de seu ideal. Foi um dos passos de maior significação na caminhada da sexagenária Sociedade de Assistência aos Cegos.

O BAÚ DO DR. HÉLIO

     Se a palavra de Arquimedes Bruno foi a faísca a incendiar corações para obter o suporte da cidade à idéia de criar um organismo de assistência aos cegos, o arcabouço da entidade estava nas mãos do Dr. Hélio Góes Ferreira. Excluindo o sentido pejorativo do termo, Dr. Hélio seria uma espécie de dono, que concentrava em suas mãos os documentos e os meios destinados a fazer a entidade funcionar.
     Nos seus passos incipientes, a primitiva Casa dos Cegos, depois Instituto dos Cegos, resumia-se praticamente num acervo que o abnegado médico guardava cautelosamente numa espécie de mala. Ali estavam os estatutos, recibos, correspondências, projetos, tudo o que se realizava ou se pretendia realizar. Logo começaram a chamar o arquivo de “baú do Dr. Hélio”, do qual ele alimentava um ciúme de amante. Nem todo mundo poderia se aproximar do “baú”, espécie de estrutura organizacional da entidade. Sem muita ou nenhuma organização, como se pode imaginar.
     Dentro daquela aparente desordem, Dr. Hélio mantinha um controle pleno do que se passava no seio da Casa. Sentia, porém, a necessidade de um ordenamento melhor. Ocorre que a maioria dos funcionários procedia dos quadros do Estado, emprestados ou cedidos à Sociedade. Não havia da parte deles uma identificação maior com as origens e principalmente com os objetivos da Instituição. Por isso mesmo, o dono não lhes confiava a manipulação daquele material arquivado.
     A situação começou a mudar com a chegada por lá, mais ou menos na década de sessenta, de duas pessoas que foram decisivas na ordenação definitiva da Sociedade de Assistência aos Cegos: Dona Josélia Almeida e D. Rivalda Sales de Sales, a quem a SAC deve muito até hoje.
     A ambas, Dr. Hélio confiou a tarefa de catalogar e dar destinação a cada um daqueles papéis que trancava em seu famoso “baú”. Com paciência, dedicação e domínio da metodologia necessária, Dona Josélia e Dona Rivalda foram aos poucos dando um embasamento correto à entidade, indispensável para seus projetos de crescimento.
     No bojo da História dos sessenta anos da SAC o leitor encontrará uma passagem relativa à inclusão da Sociedade como entidade filantrópica, detalhe fundamental ao gozo de direitos como isenção de tributos e recebimento de verbas. No “baú” do Dr. Hélio estava lá, desarrumada, é verdade, mas completa, a documentação comprobatória das finalidades e da ação executada pela SAC em prol da reabilitação do cego sob todos os aspectos.
     Graças, portanto, ao “baú” e à competência organizativa daquelas mulheres- Dona Josélia, sua atual Presidente, e Dona Rivalda, a Sociedade de Assistência aos Cegos ganhou fundamentação jurídica, tornando-se a modelar instituição de nossos dias.

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